Junho de 2010, final de tarde, escritório da Rede Mobiliza:
estou terminando minhas atividades laborais do dia, e caio no chão com uma dor
muito forte na região abdominal.
Como pessoa muito sortuda que sou, eu havia acabado de me casar
e, consequentemente, mudar de plano de saúde particular para ser dependente de
meu marido no plano corporativo dele. No intervalo, enquanto fiquei DIAS
descoberta, a necessidade apareceu.
Meus colegas e amigos, desesperados porque a dor me fazia
gritar, levaram-me ao hospital. Qual? Se eu não estava amparada por um plano de
saúde particular? O mais perto público que havia ali: Hospital Municipal Miguel
Couto.
Eduardo Paes já era prefeito há dois anos. Eu, já havia sido
atendida pelo mesmo hospital, no ano de 1998, quando a situação já era
sofrível. Piorou muito!
Chego ao hospital carregada pelo amigo Rafael, acompanhada
pelo outro amigo Rafael e um terceiro que eu não me lembro se era Eduardo ou
Tiago. Enquanto um Rafael fazia minha ficha, o outro esperava, com meus então
68 quilos no colo, enquanto a cadeira de rodas era providenciada. Maca? Não
havia disponível ali.
Meu marido chega, a cadeira de rodas aparece, entro na
emergência. Dois amigos se retiram, “Rafa irmão” fica para ajudar meu marido
com o desespero! Confesso, fui atendida rapidamente na emergência. O médico de
plantão foi atencioso, rápido e dedicado. Mesmo eu tendo que ser atendida, para
tudo, na cadeira de rodas ainda. Eu tinha duas opções: permanecer sentada na maca dentro do
consultório, atrapalhando outros pacientes que chegavam na emergência, ou
esperar na cadeira por uma maca. Obviamente, fiquei na cadeira esperando.
Mais de uma hora e meia depois, três injeções de analgésico,
tendo sido o último, uma dose de morfina, sou transferida da cadeira para uma
maca. A ÚLTIMA maca completa disponível na emergência no Hospital. Maca
completa = a maca, um colchonete, um forro fino para o colchonete e um lençol.
Tudo bem, finalmente, me deitei! Estava precisando, a dor era forte, ainda!
Fico no meio do corredor. A enfermaria lotada é dividida
para homens e mulheres (mas não os únicos dois banheiros, sendo que apenas um possuía chuveiro). Há um homem na parte reservada às mulheres, porque a
enfermaria masculina já está completamente sem capacidade para receber mais um,
incluindo corredor. Fico, eu, no corredor da enfermaria feminina, até que algum
paciente saia dali. Mas as saídas são bem menos frequentes do que as entradas.
Enfim saiu um homem da enfermaria masculina, e eu fui transferida para um
canto.
Rapidamente, as pessoas se entrosam e desenvolvem certo
nível de amizade. A desgraça coletiva aproxima o ser humano. Comigo, há outras mulheres, 12 ao todo, na mesma enfermaria.
Entre elas, há três sem condições de comunicação. Uma delas, acompanhada da
mãe, que cuidava de TODAS as pacientes naquela enfermaria. Se eu me alimentei,
consegui ir ao banheiro, e tive um mínimo de dignidade naquela situação, foi
por obra daquela senhora caridosa, que amparava à própria filha e mais 12
mulheres desconhecidas. ELA nos ajudava a descer ou subir das macas (a quem
podia andar), ELA nos ajudava dando-nos comida e bebida, ELA operava os
telefones informando familiares das outras...Infelizmente, não me lembro do
nome da minha benfeitora, mas tenho fé que ela conhece minha gratidão!
A noite chega. Somente esta senhora citada permanece naquela
enfermaria, pois não temos direito ao acompanhamento familiar. O próprio corpo de
funcionários do hospital faz vista grossa à presença de nossa benfeitora,
certamente percebendo que se não fosse ela, talvez nosso sofrimento sem voz
tivesse causado um motim necessario.
Curiosa, assim que consigo me comunicar decentemente, começo
a fazer o levantamento da situação daquela enfermaria. Das outras 12 mulheres
dividindo espaço comigo, CINCO estavam diagnosticadas com trombose. Uma delas,
desacordada, já havia tido uma perna amputada, e a outra estava visivelmente
comprometida. As outras eram menos “graves”. Escândalo número...não sei, porque
foram muitos, mas as cinco mulheres ali estavam há DOIS DIAS sem HEPARINA!
Heparina, leitor, é um medicamento anticoagulante BÁSICO, de
preço baixíssimo, presente em qualquer farmácia do país! Mas no Miguel Couto
estava “em falta”! Aquelas mulheres estavam se submetendo ao risco de perderem
seus membros, não sendo medicadas para uma doença tão frequente entre os
brasileiros, e sem um medicamento tão banal! Que outra opção elas tinham? O
Souza Aguiar? Consegue ser pior! Pedro Ernesto? Idem! Geral de São Gonçalo? Estamos
falando de outra cidade....e por aí, caminha o fluminense.
Chega a primeira noite. Eu tenho que achar um jeito de
dormir e descansar, mesmo que a tragédia se apresente ao meu lado o tempo todo.
Sou humana.
Descansar? Na enfermaria do Miguel Couto? Eu pensei isso mesmo? De onde foi que eu tirei essa utopia?
Claro que para uma pessoa com dores e sono leve, é
impossível pensar em descansar! Numa média de intervalo de vinte minutos, entra
um novo paciente, escuta-se um novo grito por ajuda, um novo lamento. Mas
parece que só os pacientes escutam. A senhora amputada, a cada intervalo de
sedação, acorda gritando com dores. Para a sedação ser aplicada novamente, a
média de tempo é de duas horas. Onde está o corpo de enfermagem? Foi a pergunta
que eu mais me fiz, naquela situação.
Dia seguinte, SÁBADO! Sábado, ao que me parece, constitui o “Dia
Nacional de procurar o pronto atendimento”. Sem detalhar, resumo que no sábado foi
instalado o caos completo naquela já lotada enfermaria!
Uma senhora chega com dores abdominais. Para ela, já não há
mais colchonete, ou qualquer tipo de forração para a maca metálica. O médico,
em solidariedade, improvisa uma cobertura com materiais descartáveis como
aventais e toucas, para não expor completamente a genitália da mulher ali, no meio de
tantos outros pacientes. Os que chegaram depois, ficaram sem NADA! Não havia
mais UMA maca sequer, para acomodar a ninguém!
Ao meu lado, no leito à minha esquerda, a paciente estava sob
efeito de sedação. Mas ela acordou! Não sou médica, mas a moça parecia ter
problemas psiquiátricos. Amarrada à maca, pés e mãos, ela só dormia. Porém, ela
acordou. E COMO acordou! Quando o efeito passou, ela passou a gritar e se
debater. Eu, momentaneamente deficiente, tentei segurar a maca, quando esta
veio de encontro à minha. Não tive forças e a moça desabou, amarrada, com a
própria urina inundando lençóis, seu avental e tudo o que estivesse sob ela,
com os acessos venais abertos, sem qualquer chance de defesa. Desabou com maca
e tudo, no chão, sem qualquer proteção. Aí sim, apareceram funcionários! Porque o
estrondo foi muito grande. Se eu pedi ajuda para segurar? Claro que sim! Mas
ali, gritar não era eficaz para nada.
Ah, mas para o acidentado de moto, IDOSO e RICO, desceu a DIREÇÃO
do hospital para atender (me desculpem pelas maiúsculas, mas eu tenho problemas
pessoais no quesito “motocicleta”. E acho um absurdo um idoso, que não tem
necessidade de circular sobre elas, se acidentar assim, no lazer). Três médicos
e duas pessoas do corpo de enfermagem para UM paciente. Enquanto os demais não
tinham UM para todos.
Idosos ricos à parte, éramos, de resto, todos pobres,
lançados a nossa própria sorte. A frequência daquelas enfermarias era, em
grande parte, de moradores de rua. Um deles, chegou a confessar para mim, que
para poder COMER (o hospital não falha nas refeições), se atira na frente de
veículos para ser atropelado e ficar sendo alimentado no hospital. Para esses,
eu doei toda a comida que recebi do hospital. Eu tinha de fora, não precisava
para mim. Não suporto ver fome!
Ainda no sábado, no início da visita, recebo
uma senhora desconhecida, de idade bastante avançada, que devagar foi chegando
ao meu leito improvisado e, tendo achado minha atenção, ficou por ali “me
visitando”. O objetivo dela? Conseguir uma pequena sobra de meu prato do
almoço. Quando eu dei, ela foi expulsa pela segurança. É. Segurança para isso
tinha.
Sábado ainda. Estou sob efeitos do antibiótico Ciprofloxaxino,
diretamente injetado em minha veia. O desconforto estomacal era frequente e se eu
não era medicada para conter, vomitava. Não fui medicada, vomitei! Numa pequena
bacia, que eu mesma encontrei perto de minha maca. Lembrando, meu problema era
um cisto de ovário, roto, que havia se rompido no momento da primeira dor e
estava sendo absorvido lentamente por meu organismo. O que eu quero explicar
com isso: a minha locomoção era bastante limitada. Mesmo assim, achei eu mesma
a bacia e ali consegui vomitar.
Com a bacia cheia de meus problemas no colo fico, por mais
de quarenta minutos. Eu não chamei a enfermagem? SIM! Algumas vezes! Minha
maca, inclusive, era ao lado do balcão onde eles DEVERIAM estar. Nunca estavam!
No momento em que precisei, várias pessoas por ali passaram, mas nenhuma me
ajudou a remover aquela bacia dali. Fico cansada, levanto-me com dificuldades
novamente, dessa vez, para atirar a bacia cheia contra aquelas pessoas que só
faziam observar. Eram funcionários do hospital, mas por algum motivo, não me
atenderam! Achei, então, de atender a eles do meu jeito delicado!
Por último, para abreviar este imenso post, minha última
resposta nervosa foi a um dos estudantes de Medicina que lotam aquelas
enfermarias nos tratando como animais de circo (muita curiosidade e quase
nenhum respeito), que ao passar pelo meu leito, fez o infeliz comentário ao ver
a capa de meu livro: “Lendo em inglês? Nossa! O que você está fazendo aqui?”
HEINNN??? Como assim, senhor estudante de Medicina? Ninguém
ensinou para você que uma coisa não tem relação com a outra? Que o fato de eu
saber ler em outra língua não me garante, absolutamente, um bom tratamento de
saúde em lugar nenhum do nosso país? O futuro de nossa Medicina me preocupa
muito! Do da nação eu já desisti há muito!
Saí eu, no dia seguinte, daquele
cenário de caos que me lembrava dos filmes de guerra a que já assisti. Saí no
domingo cedo, para ser transferida para outro órgão de saúde, dessa vez
particular e caro, para ser tratada com dignidade.
Meus colegas de enfermaria? Lá ficaram! Sem atendimento, sem
medicamentos, sem enfermagem, sem ajuda, sem QUALQUER traço de dignidade
humana. Com um escândalo seguido do outro, bem ao lado!
Oras, achei que “dignidade da pessoa humana” fosse direito
garantido pela Constituição Federal. Opa! E é? Então, avisem ao poder Executivo,
porque não basta legislar.
Torcendo para que um dia eu saiba que os tipos de cenas, descritas acima, não acontecem mais além da televisão,
Filhinha de Papai (que também é pobre e também depende dos serviços
públicos)
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